sábado, 24 de dezembro de 2016

EU VI O FIM DO MUNDO! Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross
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INTRODUÇÃO: Uma Era Anabolizada.
Dizer que Reino do Amanhã é a maior história em quadrinhos da década de 90 apenas diz o facilmente constatável – e não apenas porque a década de 90 é a década da imagem e do quadrinho ruim (ou Image), mas também porque essa obra dialoga com esse período, e o condena.
Em 1985, a DC Comics publicou duas obras admiráveis: Watchmen e Cavaleiro das Trevas (para não mencionar Crise nas Infinitas Terras, mas para esse artigo essa saga magistral não tem lugar), essas obras escritas por Alan Moore e Frank Miller respectivamente reinventaram o quadrinho e levaram a técnica à uma explosão e ao mesmo tempo esticaram as possibilidades da narrativa sequencial. A estrutura da narrativa, sobretudo em Watchmen, muitas vezes dialoga com narrativas mais tradicionais para simplesmente delas se distanciar e mostrar um novo e mais maravilhoso caminho. Cavaleiro das Trevas dialoga com o cinema, por mais que os puritanos e afoitos amantes da pureza técnica sequencial possam discordar. Mas essas obras também teriam algo mais em comum.
Seus personagens são seres que vivem em um mundo caótico onde a perda de credibilidade das instituições e dos políticos de forma geral desencadeia uma série de atos violentos e seus heróis (“heróis”, melhor dizendo) são criaturas, homens que vagam feito loucos moribundos segurando placas religiosas (Rorscharch) ou mulheres que carregam na alma a dor e o amor de amar estupradores (a primeira Espectro de Seda e seu relacionamento violento com O Comediante) ambos em Watchmen; ou são psicopatas de direita em um mundo esquizofrênico (Bruce Wayne) ou personagens que se conformam com o caos e servem “a nação” (Clark Kent) em O Cavaleiro das Trevas. Em ambas as obras, sangue e violência tingem a página das hqs de um vermelho cru e real, sem fantasias de finais felizes. Os finais de ambas as obras, por mais que indiquem um final “bom”, são na verdade bastante cinzentos, sobretudo em Watchmen.
Personagens com esse potencial para a loucura e violência e com um discurso moral com dislexia para direitos humanos foi o que mais saltou aos olhos de uma nova geração de criadores na década seguinte. A década de 90! O que dizer dessa década em termos de quadrinhos? Basicamente pensamos na testosterona de personagens mal desenhados acometidos de algo próximo a uma elefantíase artística (Rob Liefeld e o primeiro Jim Lee) ao mesmo tempo em que o discurso sede lugar a uma gritaria palavreada em textos sem sentido e fora de qualquer alcance neural. Esses personagens (os mais emblemáticos de todos são Venon e Carnificina, da Marvel), dominaram uma geração inteira de novos leitores de quadrinhos que pensavam que apenas ser “bombado” e segurar uma arma maior do si mesmo ou ter sempre o biquíni rasgando as cavidades anais fossem arte. Desse período apenas Spawn ainda se mantem, pois foi o único que, embora apresentasse as mesmas disfunções de seus contemporâneos, conseguia unir a isso uma narrativa ótima em histórias que iam além da Image pega em teste de anabolizantes.
As demais criações desse período, são figuras descartáveis de super-heróis sem princípios éticos ou morais que jogavam para o alto qualquer intento de verdade e justiça. Bem, sob certa ótica até que dialogavam, e bem, com a política americana da época.




PARTE 1: Advento.
Mas uma geração assim não poderia passar sem uma crítica, e uma crítica negativa, contra a estupidez institucionalizada. E nenhuma editora poderia fazer isso melhor do que a DC Comics. Por quê?
Verdade e justiça.
Essas palavras, para qualquer amante de hqs do gênero super-herói remetem imediatamente aos icônicos personagens criados entre o final da década de 30 e inícios da de 40 do século XX: Super-Homem (vou me dar a esse prazer de chamá-lo assim, como na minha época de guri gibizeiro), Batman e Mulher-Maravilha, ou à Liga da Justiça inteira por extensão.
Mas nenhum personagem encarna esses ideais de forma tão conscientemente perfeita quanto o Último Filho de Krypton. Essa história de Waid e Ross é dele e é sobre ele, na medida em que analisa conceitos como moral e ética na conduta dos super-heróis.
Não existe personagem que encarne esses ideais como o caipira que se torna jornalista chamado Clark Kent. Bruce é atormentado demais, e isso não é de Miller, está desde a gênese em Detective Comics 27; Diana não é estrangeira, como Kal-El, mas o kryptoniano tem uma bagagem terráquea imensa que Diana não tem. A princesa amazona, embora de uma cultura da Terra, sempre permaneceu isolada do restante da humanidade.



Clark ganhou, graças à educação de seus pais e professores, uma bagabem humanista imensa. Lembro de uma cena de Man of Steel (embora o filme seja do século XXI) em que Clark segura um exemplar de um livro de Platão. Humanismo.
Quando abrimos o numero 1 da revista (Reino do Amanhã é uma minissérie em 4 partes), lemos trechos da Bíblia retirados do Livro do Apocalipse de São João, imagens de uma águia, de um morcego, de raios e trovões saltam aos olhos enquanto lemos os assombrosos relatos do apóstolo. Cada exemplar dessa saga se inicia assim, com uma leitura da Bíblia.


Porque há um tom religioso e grave aqui. É uma obra de leitura pausada, como o movimento lento de uma sinfonia. Meditativa e ao mesmo tempo intrigante. No primeiro número conhecemos um futuro do Universo DC. Os super-heróis antigos estão aposentados e uma nova geração de heróis, alguns descendentes dos icônicos personagens já supracitados, transformaram o planeta em uma festa de rave insana sem fim. A motivação para a desistência generalizada da atividade heroica entre os grandes nomes da Liga da Justiça foi a aposentadoria do maior super-herói de todos os tempos, o Super-Homem.
O Coringa invade o Planeta Diário e mata todos, inclusive Lois Lane. Superman vai ao encalço do psicopata mas Magog, um herói jovem e em ascensão, chega primeiro. Esse Magog faz parte dessa nova geração de heróis descontrolados e sem senso ético algum. No diálogo que se segue, o povo acaba escolhendo o discurso violento e fácil de Magog. Super-Homem fica horrorizado e se afasta cada vez mais de sua atividade, permanecendo em sua fazenda no Kansas.
Essa edição inicial contém uma profundidade típicas dos quadrinhos da DC Comics – quando a editora quer realmente fazer algo significativo.
Primeiramente, a questão das instituições. Mesmo o Super-Homem não consegue lidar com o terror popular e a sede de vingança contra o predomínio da justiça que um ato de tamanha magnitude de um criminoso tende a gerar. A escolha do povo por Magog simboliza a falência das instituições ou pelo menos o crédito popular nas mesmas. O povo já não confia mais nos alicerces que constroem uma sociedade. Mas a escolha pela violência vingativa, embora que contenha uma dose catártica imensa, o horror sendo pago e apagado com outro horror, na verdade gera mentes arruinadas democraticamente, e o preço é a própria sanção punitiva da liberdade. A violência institucionalizada e escolhida como forma de justiça gera uma liberdade baseada e desenvolvida não no respeito à vida, mas na idolatria da satisfação dos próprios desejos. E isso é o que a sociedade, pós saída de cena do Super-Homem, experimenta.
Os novos heróis são seres descontrolados e incapazes de estabelecer qualquer vínculo empático com os outros homens. Eles agem pelo prazer. Pelo prazer da batalha. Pelo prazer da violência do mais forte sob o mais fraco, pelo prazer de ser humano transformado em ser natural, destituído de qualquer elemento cultural que não seja o ímpeto para a destruição.
Eles se embriagam na violência, como diria Nietzsche. As cenas no primeiro capítulo quando um ônibus é arremessado, cheio de gente, no meio da confusão entre os metahumanos, mas parece um briga de gangues rivais de futebol.
Segundo, o advento de Magog. A escolha do povo por Magog só foi possível porque a sociedade permitiu seu surgimento. O mal não nasce de fora do homem, nasce de dentro. A partir do homem o mal assume as mais variadas formas. Sempre vai ser mais fácil a violência do que o diálogo, disso não temos dúvida. É a escolha pelo Nazismo na Alemanha; pela bomba atômica entre os militares americanos; pelo ódio midiático que não respeita sequer a morte de entes queridos no atual momento brasileiro.
Magog é a personificação das coisas mais fáceis e agradáveis em nós humanos: a violência, o ódio, a demasia e a brutalidade. É como se no íntimo desconfiássemos de nós mesmos. Como se soubéssemos que amamos o mal, mas o guardamos e o disfarçamos. Porém em momentos oportunos abraçamos sem o menor pudor a espada que corta sem distinção. Abraçamos a voz que rosna e grita e xinga ao invés do clamor por justiça; acariciamos a visão de sangue e vísceras e aplaudimos o discurso insano de uma jornalista em apoio a ação popular em que um garoto assaltante negro e pobre é morto a tapas e a pauladas, preso e amarrado, em um poste de iluminação. Magog reina e domina nessas horas. São momentos cruciais para nossa humanidade cambaleante. E cambaleia mais ainda sob o peso de nossa ânsia pela leveza do descompromisso social. Magog é o caminho da violência e do ódio como meio de aplacar o mal. É como se preferíssemos a tortura como meio de justiça. A liberdade se torna apenas pretexto para atos cruéis.
Terceiro ponto. A dificuldade do diálogo não é uma questão apenas desses jovens heróis ou das escolhas infelizes dos homens. Super-Homem também padece desse mal. Talvez o isolamento que se auto impôs tenha agravado mais ainda a tristeza que amargurou sua alma desde o advento de Magog. Sua ação política contra os vilões consiste em trabalhos forçados em novos gulags. O gulag foi uma criação soviética para punir criminosos. Reino do Amanhã parece que nos adverte sob o mal da violência enquanto uma escolha racional.
PARTE 2: Apocalipse.
A experiência do totalitarismo deixa tanto seus executores quanto suas cobaias apáticas. A própria Liga da Justiça se torna uma vítima e quando o diálogo surge já é tarde demais, a trombeta tocou e raios e trovões ensurdecem ante a batalha descomunal de todos os super-heróis. Uma bomba atômica explode por fim no campo de batalha, aniquilando quase praticamente todos os super-seres. A luta central foi entre Super-Homem e Shazam! E por mais que aquele tente agora um diálogo, o detentor dos poderes da Pedra da Eternidade é implacável.
Olhando o campo de batalha sentimos até compaixão diante do fracasso do Super-Homem. Depois da bomba encaramos a estupides de ações autoritárias que levaram a uma desordem ainda maior.
O fim é uma verdadeira lamentação das almas. Seco. A bomba explode e tudo termina. As quatro páginas que mostram um diálogo entre a Trindade foi colocada depois, quando de sua primeira republicação em edição encadernada. O fim original é o campo devastado por uma explosão atômica.
Terra devastada. Seria melhor assim? O final da edição encadernada não coloca mais explicações no ocorrido. É desnecessário. O fim mesmo é o resultado da prepotência humana objetivado na bomba atômica final. Os gritos de ódio explodiram por tempo demais e quando cessam, a razão é o pó que se levanta entre defuntos.
E é consideravelmente sintomático que para conter a violência Super-Homem se torne um quase um déspota.
A figura dele com certeza é gigantesca. É o Everest dos super-heróis.
Porém o entusiasmo com figuras assim, na história humana, quase sempre se torna prejudicial. Embora a Bíblia seja citada inúmeras vezes, Kal-El não é tão Cristo aqui. Na verdade temos um salvador mais humano do que divino. Um super-homem que abandona os homens; depois tenta retomar o diálogo com a espécie que jurou defender ao mesmo tempo em que usa de ideias ditatoriais contra seus iguais. Ele voa e parece que perdeu o contato com a terra.
Ou nós perdemos. Perdemos a empatia com personagens muito perfeitos? E se perdemos, foi para a melhor? Seriam quem nossos heróis hoje? Precisamos deles hoje?
Reino do Amanhã parte da premissa da vigilância do mal. Mas não uma vigilância opressiva, mas uma vigilância pautada em princípios éticos. Pois é justamente o vigiar e punir, aquele que Foulcault critica, que leva ao totalitarismo como escape e que acaba por tornar-se uma armadilha. A vigilância não como ato policial. Mas como ato humano. Não é uma vigilância sobre o outro que culmina em um ato coercitivo, mas uma vigilância em nós mesmos. No que escolhemos, no que abraçamos.
O diálogo nesse contexto se eleva a uma categoria central dentro da conduta humana. Por mais que os personagens dessa obra ajam quase irracionalmente, sentimos um apelo pela razão, sobretudo em Super-Homem, mas que se embriaga por escolhas pouco meditadas.
EPÍLOGO.


Mark Waid foi primoroso nesse texto. Reino do Amanhã é tão magistral que desde o número os entusiastas e a crítica especializada clamaram juntos afirmando a supremacia da obra. É bom repetir de novo: é a maior hq da década de 90. E se torna ainda mais colossal se a comparamos com muita coisa daquela década. Mas as irmãs dessa obra não estão, infelizmente nos anos 90, ao menos a maioria das irmãs. Reino do Amanhã tem pareia mesmo é com as grandes obras da década de 80. Permanecerá como um clássico. E sempre que precisarmos descobrir ou redescobrir o significado de heroísmo, abriremos suas páginas para nos depararmos com personagens humanizados a um nível sem igual.
É também uma obra cinza, melancólica. Sua tristeza se inicia já com os delírios de Dodds no leito do hospital; vai acinzentando com a aparição do Espectro e alcança seu nível mais elevado com a amarga situação social daquela Terra. Que é analogia para a nossa vida no presente: as grandes obras sempre falam de nós como se nos vissem através de um espelho distante.
Waid não economizou nas referências ao Universo DC, enumerá-las aqui, seria impossível, por mais tentação que se apodere deste escriba. É coisa para um segundo texto sobre a obra. Além disso, ainda temos a questão religiosa. O texto de Waid pode muito bem ser lido como interpretação do Apocalipse. E, por coincidência ou não, o panorama imagético bíblico do Apocalipse se casa com perfeição com os personagens da Casa das Lendas!
Outro ponto grandioso são os diálogos. Desde a cena entre Dodds e o Pastor até a cena da Trindade na lanchonete, temos falas tão conscientemente dramáticas, que se fossem adaptadas para o cinema poderiam fazer parte de muitas cenas sem qualquer modificação.
E temos Alex Ross. Aclamado por unanimidade entre os fãs do gênero, Ross se encontra melhor aqui do em Marvels. Podem discordar quem quiser, mas cenas como a chegada do Espectro, a primeira aparição de Clark na fazenda, a Mulher-Maravilha, as cenas em Gotham ou o Lanterna Verde no espaço são espetaculares. A visão de Ross para o Flash é linda, talvez a melhor representação do personagem nos quadrinhos.
E não sentimos aqui o vazio inoperante que toma conta em algumas páginas de Marvels. Há uma força pictórica que não transforma as cenas em quadros parados, como na obra da editora do Homem-Aranha. Algumas vezes isso até acontece, mas na maioria das vezes temos uma fluidez imagética melhor conseguida aqui com Super-Homem e companhia.
Assim como Waid, Ross não poupou referências, e numerá-las aqui não é o proposito desse texto. Ele tem grande conhecimento dos personagens da DC, e isso faz a diferença em qualquer criador que se preze. Conhecer o terreno que pisa por experiência própria.
Eu tenho a sensação de que o traço e o estilo de Ross se adequam mais aos personagens da DC do que aos de qualquer outra editora ou mesmo qualquer outro gênero dos quadrinhos. Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Shazam! nasceram para serem pintados por Ross. Com Ross, aquela questão do “ícone” se mostra mais coerente com os personagens da Liga da Justiça do que com qualquer outro grupo de super-herói da DC ou de qualquer outra editora. E digo isso não para diminuir outros personagens, pois também têm sua relevância histórica imperturbável, não precisam ficar verdes de raiva nem subindo pelas paredes. Não é vingança, é justiça mesmo.


Uma nota para Reino do Amanhã. O 10 é questão natural mesmo. É uma obra que alcança os pontos mais elevados da criação na arte sequencial.

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